terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Condição humana


O corpo diz uma rima,
E criva nas rugas
Seu grifo.

A boca tem sede de vida
Declama com a língua
Seu hino.

Uma mão erguida
Pode ser discutida
Pode ser despedida
Ou apenas aceno.

Um olhar percebido
Esconde por dentro
Um grito. Desse olhar
Se crava no peito
Um nome inscrito.

A pele carrega a textura
Inversa do gesto, remendo
De pele e pelo, no homem costura
Qualquer sentimento.

O corpo se veste de corpo
Mas entre a carne e o osso
No dorso, no eixo,
O corpo é texto.

Nas páginas da poesia humana
Emenda-se um verso hermético.
Do vivo poema corpóreo
Se faz um pensar
Sinestésico.

Agradeço de coração a todos os leitores da sinestesia, e deixo a minha alegria sincera de celebrar dois anos do "sinestesicamente falando"! 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Sobretudo


Tu foste flor
Em meus intertextos
E embaraços.

Tu foste fogo
Ardente puro
Amor dilatado.

Tu foste tudo
Sortida em mulher.
Tu és o foste
E ainda será
(Caso quiser).

Se lembro do início
Sorrio.
Epifania louca de amigos
Enamorados.

Dancei a valsa
Duas vezes
Mais dois anos
Esperei dizeres
Se sim.

Antes do filme
Tomei tua mão
Quando te pedi
Me perdi.

Já leram minha palma:
Não há casamento.
Leram a tua:
Palavras ao vento.
Mas deixaram de ler
A linha
Decantada
De olhares nossos.

Meu amor,
Digo uma coisa
A você:

Eu já era seu
Antes de ser.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Lírica bússola


Entre você e eu
O cristal embaçado
Que assim deixo.

Deixo você ser
Pouco menos
Deixo que seja
Só desejo.

E o vidro embaçado.
A leitura errada
Você faz e eu vejo.
Tenta ler, mas só quero
O teu beijo, vai me ler
E não lê o Outro trecho.

O vidro quase opaco.
Você busca, eu pelejo
E escondo entre as linhas
meu cortejo.

Fecho o coração
Mas sobre ti escrevo:
Um desleixo.
Flecho sem precisão
Mas de você espero
O desfecho. 

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A farsa


Sou água suja
Que sobrou
Pra me lavar.

Alma profunda
Em chaga furor
De vida escura.

Da palma, o traço.
Eu sou pedaço
De outro tempo.

Bagaço. Se não
Sou me faço.
Sou ouro também.

E vago, posso me
Ser, sendo outro.                     
E depois de um laço
Sou tudo de novo.

sábado, 27 de outubro de 2012

Aponta-dor


A lâmina reflete
A madeira podre
E brinca
Polindo a sujeira.

Um corte contínuo
na volta do centro
Modela a espira.
Não vê do lápis
Sua resina.

Apara a madeira
Recorta certeira
Adaga-rapina.
Desfaz o mantido
Decreta sua lei
E não desatina.

Incansável polir
De feridas.
Tua grande ordem:
Pôr o material
À sua forma.

Remove excreção
Lapida e ferve  
A dor escarlate.
Mas Lâmina não vê
O tamanho
Da tua arte.

sábado, 13 de outubro de 2012

Metalinguagem


No poema, a chave.
Ao prazer me entrego.
Um deixar fluir
Do meu tempo oferto.

Um papel em branco
Ou rabiscos na borda
E o convite: Vem!
Vem não ser! Vem ser!
Vem sentir o deleite
Do desejo que acorda!

Então tomo papel e escrevo
Pra vê-lo sorrir de volta.


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Translado


Amanhã faço oito cinco.
Hoje me vi no espelho
E no retrato sobre a estante.
Toquei a rugosa pele, áspera.
Me vi como dantes, víscera.
Chorei ao lembrar dos tempos
de vida. Dos contratempos.

As surras que levei pequeno,
A inquietante efervescência,
A militância, a fábrica de renda,
O casamento, a família, a morte
De um por um. A dor da alegria
Ser efêmera.

Viver muito é se conformar
Com a perda.
Vi morte de quem mais amei,
Levada em súbito, entregue.
Vi Morte me levar também
Vi Morte me levar, de leve.

Batendo na porta todos os dias
Cumprindo seus honorários.
Morte não me abraçou de vez.
Morte se serviu em doses
Diárias. Homeopáticas.
Morte me levou uma parte,
Depois a outra.

E sento-me dela diante.
Agora sem medo, encaro Morte,
Amiga que abraço com alento:
Entrego os fios que me restam.
A ela ofereço os acordes
Da última sinfonia.

Deparo-me sôfrego, observo a mim
Já não me pertencendo.
Vejo a matéria. Vejo-me luz.
Deixo-me ser a Morte.
Deixo-me mais.
Deixo-me.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Poética da pedra e da onda


Ora onda, que adianta
Caminhar os sete mares
Percorrer o tédio azul
E me encontrar no cais?
Esquecestes? Sou rocha
Sou forte, estridente
Porque vide contente
De prontidão a desmanchar?

                                                                                
                                                                                            Ora pedra, pra que isto?
                                                                                            Ser de tanta rispidez?
                                                                                            Mesmo líquida, me ergo
                                                                                            Maleável, danço livre
                                                                                            e te abraço outra vez.
                                                                                            Antes desmanchar em tudo
                                                                                            E recompor, correr o mundo
                                                                                            Que viver de solidez. 

Pois um dia cansarás
Dessa peregrinação
Escolherás ser de mar calmo
Deixarás de abstração
Veja, siga meu exemplo
Eu não quebro. Eu não contemplo
Nem inverno, nem verão.

                                                                                           De que vale, dona pedra
                                                                                           Tanta força, esse respeito
                                                                                           Se de tanto eu te encontrar
                                                                                           Teu formato anda desfeito.
                                                                                           Veja o Sol! De longe os prados
                                                                                           O casal de namorados
                                                                                           Que veio só para nos ver!                                                                                                                     
                                                                                         

Diga onda qual beleza
Há em se atirar na rocha
Espirrar água para o alto
Umedecer no cais as costas
De quem vem, e acham graça
Vão molhados para casa
Quiçá gripe os convém! 

                                                                                          Vão felizes por ter visto
                                                                                          Bem de perto nosso encontro
                                                                                          Cristais se elevam e jaspeiam
                                                                                          O mar, a brisa,  o sol se pondo.
                                                                                          Não chame loucura a alegria
                                                                                          Não é insana a poesia
                                                                                          De enxergar melhor o mundo.


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Uma rosa quanto tempo


Quanto tempo dura
Uma rosa
Bem cuidada que
na aurora desabrocha?

Quanto tempo leva
Um botão pequeno
A desmanchar sereno
Sob um dia de luz?
 
Quanto tempo
Uma pétala despenca
um talho dispensa
um estado viril?

Por quanto tempo
Mantém-se erguida?
Opulente? Vivida?
Intrigado, me pego afoito.

As rosas que te oferto
Não durarão um ano.
Mas você já dura
Há dezoito.

Feliz aniversário, amor!

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Sobre a viga


Uma chuva torrencial apagava e acendia os postes do morro. O vento soprava enfurecido, vingava os dias de sol queimando asfalto. Corria morro acima morro abaixo, roupa do varal sendo levada, um som abafado de carro ecoando. Numa igreja, pastor orava. E em tudo, as casinhas. Juntas, pequenas, se abraçavam – o telhado de uma desabou -. Gritos agudos de longe, meninada na rua chorava procurando onde escorar. Mãe desesperada gritando nome de filho e pai suspendendo os móveis, na esperança de alguns salvar. Uma senhora erguia a bíblia, gritando que já estava escrito. Som de carro interrompido: pifou a boca de som.   O inferno era frio. Chuva teimava não cessar, desbotava pinturas, desmanchava sonhos. Escorria-os encosta abaixo, misturados à podridão fétida da lama barrosa que despencava sobre outra casa. Menos um sonho.

Mas as casinhas. As que ficavam, as que fincavam. Tinham raízes, e mais coração que os homens. Ante o desastre chuvoso e os clamores de pessoas por salvação, elas sabiam ser fraternas entre si. Dividiam um mesmo calor que só elas sabiam. Estavam ali como um único alicerce, um lastro de solidariedade prestada a cada casa caída. Ante o descaso da humanidade, do egoísmo latido do homem, estavam juntas: Sabiam que eram uma família. As casinhas. Eram uma oração.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Controle


Eu te ponho num pedestal
E te cubro de adornos
À minha pobre languidez.

Por dentro um grito surdo.
Cerro os dentes, franzo o cenho,
Suor escorre, fecho o punho,
Vejo de novo, respiro fundo:
Está cessada a embriaguez.

domingo, 12 de agosto de 2012

Fagulha escondida


Tu és enigma.
Cobre teu rosto com véu,
Esconde-se ao léu,
Neblina.

Leio-te, bebo-te,
Provo-te acre, híbrida,
Traduzo-te dócil, lírica,
Tu és paradoxo, ilógico.
És vida.

Faz-se rocha, fere.
Mas afaga ao toque da pele
E desfaz a raiva contida.
Afasta sem procedência,
Me puxa, simula decência,
convida.

Impõe.
Lança um olhar austero.
Não retruco, inclino a cabeça,
mas ainda observo.

No teu reflexo,
Escondida na ávida moldura,
Vejo paixão, no teu peito
Vejo pele de cordeiro,
E um amor que tímido fulgura.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Anacrônico


Rever. Abracei pra (re)sentir seu cheiro, apertar sua mão por frio. Outros tempos, imergidos em novos anseios, novas ideologias, novos você e eu. Rever-te. Mas sem mais dar as mãos. Examinar suas diferenças por fora, tatear o coração por dentro. Suas linhas, o desenhado rosto macio, menina-anjo que já delineia feições de mulher adulta. Retirou dos dentes o aparelho, mas manteve o cândido sorriso. A fresca voz.  Eu, menos vaidoso, já não me importo em sair de sandálias, deixar a barba crescer. Mas diante de ti, eu era ontem. Eu era há um ano. Era menino do colegial, era contigo. Adimensional, perdi-me no seu labirinto. É passado vivo, futuro não-vivido, um relicário de expectativas e frustrações. Condicionado a lembrar do seu sabor, eu senti dor. Senti dó de mim. Mas ainda pude compreender as suas razões. Não mudamos tanto, talvez. Pensei em procurar as cinzas do amor cremado, mas temi me deparar com rubras asas de um pássaro ruflando sobre o céu azul. Só então vi: Ainda amo. Todavia sem exigência, sem ciúme, sem compromisso. Se antes amei com beijos, hoje amo com cativos. Amo por companheirismo. Amor-apaixonado, sem perceber - porém evidente-, é hoje amor-amigo. Te rever foi, além de sinestésico, epifânico.