Naquele dia, acordou Deus
inquieto, insano. Levantou de sua cama em súbito, agitou o esqueleto para
espreguiçar o corpo e colocou na vitrola um rock ao invés da velha bossa
matinal. Não compreendia o motivo de tanta euforia, mas sentia-se efusivamente
feliz e era isso que importava: foi trabalhar em sua sala de criação humana.
Entrando na “divina oficina”, observou a imensidão de sua prateleira:
protótipos, projetos, rascunhos, moldes quase prontos e todos tão parecidos,
todos tão comuns, seguidos cartesianamente de suas doses controladas de lucidez
e sentimentos. Caiu em si que a criação dava lugar a reproduções de humanos sempre
semelhantes, com dores sonhos sorrisos desatinos iguais. Postulou então que
aquele dia era especial, e ao som do rock alto vindo de seu quarto decidiu a
criação de um ser fora dos padrões de suas obras e sem pressa foi pondo os
ingredientes sobre a mesa.
Antes de tudo, decidiu: será
mulher. Uma mulher pode ser capaz de suportar a carga de excessos dessa nova e
desvairada criação. Então abriu o recipiente da sapiência e com a outra mão
tirou a tampa de uma garrafa com líquido róseo – o amor. Despejou os dois sobre
a massa de carne humana que havia carinhosamente separado. Derramou sem observar
a quantidade que botara, apenas fitou o líquido e o pó em fusão com a massa e
esperou esvaziar os dois recipientes da sua mão. Animado, puxou outra gaveta e
atou a abrir frascos de diferentes tonalidades, 500 ml de carisma, 2 kg de
erudição, um saco inteiro de perfeccionismo, três xícaras de coragem. Atirou
tudo. Mas não bastava. Ela tinha de ser insensata, ser sentimento sobre razão,
ser coração, ser impulso. Foi até o armário de loções proibidas, esboçou um
riso traquino e o abriu. Sem pensar duas vezes pegou o frasco dos dizeres
“Possessivo (a)”. Pegou orgulho, pegou loucura, percebeu o quanto cada um tinha
a ver com a heterogeneidade que tanto
cobiçava! Colocou cada ingrediente
fazendo questão de aproximar o rosto para sentir a gostosa fragrância da sua
inovação.
Deus então observou a densa
mistura que fizera – notou também a bagunça da oficina – e com a delicadeza do
melhor artesão, modelou a massa. Diluiu o mosaico multifacetado, plurívoco, o
caldeirão de milhares de personalidades para esculpir uma única mulher, a qual
carregaria consigo todas as vozes, Apolo e Dionísio numa versão una e feminina.
Pôs um cabelo rubro, chama acesa, e pele clara como algodão. Finalizando,
encheu-a com o elixir da sensualidade. E, cessada a euforia, pôde então dar um
passo para trás e analisar o arcabouço do projeto. Uma perfeição. De fato,
concluiu que sua obra seria inspiração para muitos, ao passo que jamais deixará
de ser híbrida: Uma musa.
Uma homenagem ao 20º aniversário de Amanda Silveira, blogueira do "Musa híbrida", minha ex (porém eterna) cunhada e muito amiga.
Amo você, cunha!