terça-feira, 1 de maio de 2012

Hiato entre velho e novo testamento


     Naquele dia, acordou Deus inquieto, insano. Levantou de sua cama em súbito, agitou o esqueleto para espreguiçar o corpo e colocou na vitrola um rock ao invés da velha bossa matinal. Não compreendia o motivo de tanta euforia, mas sentia-se efusivamente feliz e era isso que importava: foi trabalhar em sua sala de criação humana. Entrando na “divina oficina”, observou a imensidão de sua prateleira: protótipos, projetos, rascunhos, moldes quase prontos e todos tão parecidos, todos tão comuns, seguidos cartesianamente de suas doses controladas de lucidez e sentimentos. Caiu em si que a criação dava lugar a reproduções de humanos sempre semelhantes, com dores sonhos sorrisos desatinos iguais. Postulou então que aquele dia era especial, e ao som do rock alto vindo de seu quarto decidiu a criação de um ser fora dos padrões de suas obras e sem pressa foi pondo os ingredientes sobre a mesa.
     Antes de tudo, decidiu: será mulher. Uma mulher pode ser capaz de suportar a carga de excessos dessa nova e desvairada criação. Então abriu o recipiente da sapiência e com a outra mão tirou a tampa de uma garrafa com líquido róseo – o amor. Despejou os dois sobre a massa de carne humana que havia carinhosamente separado. Derramou sem observar a quantidade que botara, apenas fitou o líquido e o pó em fusão com a massa e esperou esvaziar os dois recipientes da sua mão. Animado, puxou outra gaveta e atou a abrir frascos de diferentes tonalidades, 500 ml de carisma, 2 kg de erudição, um saco inteiro de perfeccionismo, três xícaras de coragem. Atirou tudo. Mas não bastava. Ela tinha de ser insensata, ser sentimento sobre razão, ser coração, ser impulso. Foi até o armário de loções proibidas, esboçou um riso traquino e o abriu. Sem pensar duas vezes pegou o frasco dos dizeres “Possessivo (a)”. Pegou orgulho, pegou loucura, percebeu o quanto cada um tinha a ver com a  heterogeneidade que tanto cobiçava!  Colocou cada ingrediente fazendo questão de aproximar o rosto para sentir a gostosa fragrância da sua inovação.
     Deus então observou a densa mistura que fizera – notou também a bagunça da oficina – e com a delicadeza do melhor artesão, modelou a massa. Diluiu o mosaico multifacetado, plurívoco, o caldeirão de milhares de personalidades para esculpir uma única mulher, a qual carregaria consigo todas as vozes, Apolo e Dionísio numa versão una e feminina. Pôs um cabelo rubro, chama acesa, e pele clara como algodão. Finalizando, encheu-a com o elixir da sensualidade. E, cessada a euforia, pôde então dar um passo para trás e analisar o arcabouço do projeto. Uma perfeição. De fato, concluiu que sua obra seria inspiração para muitos, ao passo que jamais deixará de ser híbrida: Uma musa. 

Uma homenagem ao 20º aniversário de Amanda Silveira, blogueira do "Musa híbrida", minha ex (porém eterna) cunhada e muito amiga.
Amo você, cunha!